sábado, 18 de julho de 2009

154 SONETOS DE WILLIAM SHAKESPEARE


154 SONETOS
William Shakespeare
Homenagem aos 400 anos da 1a. edição (1609-2009)
Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta
Ibis Libris (2009)
R$ 44,00
ISBN 978-85-7823-026-5
216 p. / 14x21 cm


http://ibislibris.loja2.com.br/3983111-154-Sonetos
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SONETO 1

Dentre os mais belos seres que desejamos enaltecer,
Jamais venha a rosa da beleza a fenecer,
Porém mais madura com o tempo desfaleça,
Seu suave herdeiro ostentará a sua lembrança;
Mas tu, contrito aos teus olhos claros,
Alimenta a chama de tua luz com teu próprio alento,
Atraindo a fome onde grassa a abundância;
Tu, teu próprio inimigo, és cruel demais para contigo.
Tu, que hoje és o esplendor do mundo,
Que em galhardia anuncia a primavera,
Em teu botão enterraste a tua alegria,
E, caro bugre, assim te desperdiças rindo.
Tem dó do mundo, ou sê seu glutão –
Devora o que cabe a ele, junto a ti e à tua tumba.

SONETO 2

Passados quarenta invernos sobre a tua fronte,
Após cavarem fundos sulcos nos vergéis de tua beleza,
O vigor de tua orgulhosa juventude, hoje tão admirada,
Será um esmaecido ramo sem nenhum valor.
Então, ao te perguntarem onde está o teu encanto,
Onde está a riqueza de teus luxuriosos dias,
Respondes, com olhos fundos,
Que não passaram de vergonha e descabidos elogios.
Que louvores mereciam o uso de teus dotes,
Se pudesses responder: “Este belo filho meu
Me vingará, e justificará todos os meus atos”,
E provará ter herdado de ti toda a formosura.
Isto farás de novo quando fores mais velha,
E o sangue te aquecer quando te sentires fria.
SONETO 3

Mira no espelho e descreve o rosto que vês;
Agora é o tempo em que a face deve mudar,
Cujos reparos não tenhas logo renovado,
Terás enganado o mundo, à revelia de tua mãe.
Onde está a bela, cujo ventre não semeado
Desdenha o cultivo de teus cuidados?
Ou de quem será a tumba de um ser tão cioso
De seu amor-próprio para negar a posteridade?
És o espelho de tua mãe, e tua semelhança
Recorda os adoráveis dias de sua primavera;
Então, pela tua idade, poderás ver,
Apesar das rugas, o teu tempo áureo;
Mas se vives para não seres lembrado,
Jamais te cases, e tua imagem fenecerá contigo.

SONETO 4

Doçura pródiga, por que gastas
Contigo mesma o legado de tua beleza?
A herança da natureza nada dá, porém cede,
E, sendo franca, empresta a quem for livre;
Depois, bela e tola, por que abusas
Da abundância que te é dada a ofertar?
Usurária sem proveito, por que usas
Um valor tão grande e, mesmo assim, não vives?
Lidando apenas contigo mesma,
Tu, a ti mesma, teu doce ser enganas;
Então, como, quando a natureza te chama para que vás,
Que espólios aceitáveis deixarás?
Tua beleza intocada contigo deve ser enterrada,
Pois, ao ser usada, tornar-te-á sua executada.
SONETO 5

As horas que suavemente emolduraram
O olhar amoroso onde repousam os olhos
Serão eles o seu próprio tirano,
E com a injustiça que justamente se excede;
Pois o Tempo incansável arrasta o verão
Ao terrível inverno, e ali o detém,
Congelando a seiva, banindo as folhas verdes,
Ocultando a beleza, desolada, sob a neve.
Então, os fluidos do estio não restaram
Retidos nas paredes de vidro,
O belo rosto de sua beleza roubada,
Sem deixar resquícios nem lembranças do que fora;
Mas as flores destilaram, sobreviveram ao inverno,
Ressurgindo, renovadas, com o frescor de sua seiva.

SONETO 6

Assim, não deixemos a mão rota do inverno desfigurar
De ti o teu verão antes que sejas destilada;
Adoça teus sumos; orna um lugar
Que tenha o valor da beleza antes de sucumbires.
Este uso não é a proibida usura
Que alegra os que pagam os devidos juros –
Para que cries, para ti mesma, um novo ser,
Ou sejas dez vezes mais feliz do que és.
Serias dez vezes mais alegre,
Se em dez de ti dez vezes te transmudasses;
Então, o que poderia fazer a Morte se partisses,
Passando a viver na posteridade?
Não sejas turrona, pois és por demais bela
Para que a Morte vença e os vermes te consumam.
SONETO 7

Vê, no Oriente quando a graciosa luz
Ergue a cabeça incandescida, todos os olhos
Baixam-se ante a nova visão,
Louvando com os olhares a sua sagrada majestade;
E tendo alçado o íngreme e celestial monte,
Parecendo forte e jovem na meia-idade,
Embora os mortais ainda adorem a sua beleza,
A seguir a dourada peregrinação;
Porém, quando do alto, taciturno,
Velho e enfraquecido, ele do dia se retira,
Os olhos, antes fiéis, agora se desviam
De seu poente, e miram em outra direção;
Então, tu, que também abandonas o teu auge,
Morres inassistido, a menos que deixes um filho.

SONETO 8

Doce música, por que a ouves tão triste?
Doçuras não se atacam; a alegria se rejubila;
Por que amas aquilo que não recebes efusivo,
Ou com prazer aceitas teu incômodo?
Se a harmonia de afinados sons
Bem ajustados ofendem o teu ouvido,
Docemente te repreendem, tu que confundes
As partes do que deverias suportar.
Vê como uma corda à outra unida,
São tangidas, de cada vez, mutuamente;
Assemelhando-se a pai e filho, e à feliz mãe,
Que, em uníssono, entoam um doce som;
Cujo canto inaudível, sendo muitos, soa como um,
Assim cantando para ti: “De nada valerá a tua solidão”.
SONETO 9

É por medo de causares pranto a uma viúva
Que despendes a vida como solteiro?
Ah, se morreres sem deixar um herdeiro,
O mundo te lamentará como uma esposa estéril;
Deixarás enviuvar o mundo, que ainda lamentará
Não teres legado a ninguém a tua semelhança,
Como cada viúva mantém, em memória,
Nos olhos dos filhos, as feições do marido.
Vê que desperdício há no mundo
Mudando senão de lugar, e ainda lhe aproveita;
Mas o desperdício da beleza aqui termina,
E sem uso, seu beneficiário a destrói.
Esse peito não tem amor pela humanidade
E a si mesmo lança em vergonha mortal.

SONETO 10

Envergonha-te de negar que não ames,
Tu que és tão imprudente;
Aceita, se quiseres, ser amada por tantos,
Mas é certo que não ames ninguém;
Pois tens um ódio tão mortal,
Que apenas contra ti mesma não conspiras,
Buscando arruinar este nobre teto,
Que tanto desejas consertar:
Ah, muda teu pensamento que mudarei o meu!
Deve o ódio ter mais reservas do que o amor?
Sê como tua presença, gentil e graciosa;
Ou a ti, ao menos, te proves amável,
Sê outra pelo amor que tens por mim,
Para que a beleza continue a viver em ti.
SONETO 11

Tão rápido quanto cresces, assim fenecerás
Em um dos teus de quem te despedes;
E o sangue novo que aos mais novos concedes
Poderás chamar de teu quando deixares a juventude.
Aqui reside a sabedoria, a beleza e o progresso;
Sem isto, há loucura, velhice e decrepitude.
Se todos se importassem, o tempo cessaria,
E em três tempos do mundo ele se despediria.
Deixemos aqueles que a Natureza não preservou,
Duros, amorfos e rudes, morrer sem filhos.
Àqueles a quem ela concedeu a graça, deu mais ainda;
Cujo presente abundante mais deverias prezar;
Ela te esculpiu como símbolo e, por isso,
Mais deverias produzir para não feneceres.

SONETO 12

Quando conto as horas que passam no relógio,
E a noite medonha vem naufragar o dia;
Quando vejo a violeta esmaecida,
E minguar seu viço pelo tempo embranquecida;
Quando vejo a alta copa de folhagens despida,
Que protegiam o rebanho do calor com sua sombra,
E a relva do verão atada em feixes
Ser carregada em fardos em viagem;
Então, questiono tua beleza,
Que deve fenecer com o vagar dos anos,
Como a doçura e a beleza se abandonam,
E morrem tão rápido enquanto outras crescem;
Nada detém a foice do Tempo,
A não ser os filhos, para perpetuá-lo após tua partida.
SONETO 13

Ah, se pudesses ser quem és! Mas, amado,
Tens a vida apenas enquanto ela pertence a ti.
Deverias te preparar para um fim tão próximo,
E a outro emprestar o teu doce semblante.
Assim, se a beleza que deténs em vida
Não tiver um fim, então, viverias
Novamente após a tua morte,
Quando a tua doce prole ostentasse a tua doce forma.
Quem poderia ruir uma casa assim tão bela,
Cuja economia em honra se poderia prevenir
Contra o vento impiedoso dos dias frios,
E a estéril fúria do eterno estupor da morte?
Ó, quanto desperdício! Meu caro, sabes
Que tiveste um pai: deixa o teu filho dizer o mesmo.

SONETO 14

Não faço meus julgamentos pelas estrelas;
Embora conheça bem a astronomia,
Mas não para adivinhar o azar ou a sorte,
As pragas, as privações, ou as mudanças de estação;
Nem posso adivinhar o futuro próximo,
Dando a cada um a sua tormenta,
Ou dizer aos príncipes se tudo passará,
Predizendo o que apenas os céus podem trazer:
Porém, retiro a minha sabedoria de teus olhos,
E (eternas estrelas) neles entendo a sua arte,
Pois, juntos, vencerão a verdade e a beleza,
Se de teu próprio ser verteres o teu alento;
Senão, isto, eu prenunciaria:
Em ti toda a verdade e beleza findam.
SONETO 15

Quando penso que tudo o que cresce
Guarda em perfeição só um momento,
Que este imenso palco, sem desvendar, apresenta
O que as estrelas influenciam em segredo;
Quando noto que os homens, como as plantas,
Vivem e morrem sob o mesmo céu,
Gabando-se de um viço que se esvai,
E de todas as bravatas imemoriais;
Então a vaidade desta breve permanência
Faz-te mais jovem ante meus olhos,
Onde o Tempo perdido se debate com a Morte
Para transformar teu dia de juventude em noite escusa;
E sempre combatendo o Tempo pelo teu amor,
Se de ti ele roubar, mais uma vez te recomponho.

SONETO 16

Mas, por que não lutas com mais destemor
Contra o Tempo tirano e sanguinário,
E te fortificas contra teu declínio
Com meios mais abençoados que minha frágil rima?
Estás agora no ápice das horas felizes,
E em meio aos jardins ainda em flor,
Com o desejo virtuoso carregas as vívidas flores,
Mais do que as tuas falsas pinturas.
Então, deveriam as linhas que a vida repara
Com isto, o lápis do Tempo ou a pena de meu discípulo,
Nem pelo valor intrínseco ou beleza visível
Podem fazer-te viver diante dos olhos do mundo.
Ceder faz com que permaneças,
E vivas inspirada pelos teus doces dons.
SONETO 17

Quem crerá em meu verso no futuro,
Se for tomado por teu completo abandono?
E Deus sabe que tua vida se transformou em tumba,
Sem deixar entrever sequer a metade de teu ser.
Se eu pudesse descrever a beleza de teus olhos,
E enumerar infinitamente todos os teus dons,
O futuro diria, este poeta mente,
Tanta graça divina jamais existiu em um ser.
Podem os papéis amarelados em que escrevo
Serem desprezados como velhos falastrões,
E tuas verdades poriam fim à ira deste poeta,
E prolongariam o som de uma antiga canção:
Mas, se um filho teu vivesse, então,
Viverias duas vezes – nele e em meu canto.

SONETO 18

Como hei de comparar-te a um dia de verão?
És muito mais amável e mais amena:
Os ventos sopram os doces botões de maio,
E o verão finda antes que possamos começá-lo:
Por vezes, o sol lança seus cálidos raios,
Ou esconde o rosto dourado sob a névoa;
E tudo que é belo um dia acaba,
Seja pelo acaso ou por sua natureza;
Mas teu eterno verão jamais se extingue,
Nem perde o frescor que só tu possuis;
Nem a Morte virá arrastar-te sob a sombra,
Quando os versos te elevarem à eternidade:
Enquanto a humanidade puder respirar e ver,
Viverá meu canto, e ele te fará viver.
SONETO 19

Tempo voraz, corta as garras do leão,
E faze a terra devorar sua doce prole;
Arranca os dentes afiados da feroz mandíbula do tigre,
E queima a eterna fênix em seu sangue;
Alegra e entristece as estações enquanto corres,
E ao vasto mundo e todos os seus gozos passageiros,
Faze aquilo que quiseres, Tempo fugaz;
Mas proíbo-te um crime ainda mais hediondo:
Ah, não marques com tuas horas a bela fronte do meu amor,
Nem traces ali as linhas com tua arcaica pena;
Permite que ele siga teu curso, imaculado,
Levado pela beleza que a todos sustém.
Embora sejas mau, velho Tempo, e apesar de teus erros,
Meu amor permanecerá jovem em meus versos.

SONETO 20

Tens a face de mulher pintada pelas mãos da Natureza,
Senhor e dona de minha paixão;
O coração gentil de mulher, mas avesso
Às rápidas mudanças, como a falsa moda que passa;
Um olhar mais brilhante, e mais autêntico,
A imantar tudo que contempla;
Uma tez masculina, a guardar todos os seus tons,
Rouba a atenção dos homens, e causa espanto às mulheres.
Se como mulher tivesses sido primeiro criado;
Até a Natureza, ao te conceber, caiu-lhe o queixo,
E eu, também, caído a teus pés,
Nada mais acrescento ao meu propósito.
Mas, ao te escolher para o prazer mais puro,
Teu é o meu amor e, teu uso dele, o seu tesouro.
SONETO 21

Não sou como aquela Musa,
Movida ao seu verso pelo adorno,
Que o próprio céu usa como ornamento,
E o belo com seu alento se insinua,
Par a par, comparando-se, orgulhoso,
Ao sol e à lua, às ricas joias da terra e do mar,
Com as primeiras flores de abril, e tudo o que é raro
Que os céus abarcam sob a abóbada imensa.
Ah, deixa-me ser fiel ao amor e à escrita,
E então, creia, meu amor é tão puro
Como de uma criança, embora menos luzidio
Que as fixas flamas douradas no manto celestial.
Deixa que digam mais do que tão bem ouvem;
Não louvarei senão o que eu puder defender.

SONETO 22

Meu espelho não me dirá que envelheço,
Enquanto tenhas a mesma idade e juventude;
Mas quando em ti vejo a essência do tempo,
Sinto que a morte expiará meus dias.
Pois, toda a beleza que viceja em ti
É apenas um prolongamento do meu coração
Que vive em teu peito, como o teu em mim:
Como, então, eu seria mais velho do que és?
Ah, então, meu amor, sê cuidadosa
Como eu, não por mim, mas por tua vontade;
Carregando teu coração, que guardarei comigo,
Como a ama protege o seu bebê querido.
Não penses em teu coração quando o meu fenecer;
Tu me deste o teu para nunca mais o devolver.
SONETO 23

Como um mau ator no palco,
Que, por temer, está aquém de seu papel,
Ou uma fera tomada por excesso de ira,
Cuja força abundante enfraquece o coração;
Eu, então, por desconfiar, me esqueço de celebrar
A sublime cerimônia do enlace amoroso,
E, em mim, a seu poder parece decair,
Sob o peso da força do meu amor.
Ah, deixa meu rosto verter a eloquência
E os presságios surdos de meu peito arfante,
Que anseiam pelo carinho e procuram a recompensa
Mais do que a língua que tanto o expressou.
Ah, aprende a ler o que o amor em silêncio escreveu:
Só com a pureza do amor podemos ver e compreender.

SONETO 24

Meus olhos brincaram de pintar-te, e lançaram
A forma de tua beleza sobre a tela do meu coração;
Meu corpo é a moldura onde está contida,
E a perspectiva é a melhor arte do pintor;
Pois através do artista deves constatar seu talento
Para perceber onde está tua verdadeira imagem retratada,
Que, no espaço dentro do peito ainda está dependurada,
Onde teus olhos são janelas lustradas.
Agora vê que bem fizeram mudar de olhos:
Os meus desenharam a tua forma, e os teus para mim
São as janelas em meu peito, por onde o sol
Deleita-se em admirar, vendo-te dentro de mim.
Embora os olhos queiram exibir a sua arte –
Pintam só o que vêem, sem conhecer o coração.
SONETO 25

Deixa aqueles cuja sorte brilha nas estrelas
Gabarem-se das públicas e nobres pompas,
Enquanto eu, impedido de tal fortuna,
Não procurei a alegria naquilo que mais prezava.
Dos príncipes os diletos espalham belas flores,
Mas como o mal-me-quer sob o sol,
E em si mesmos jaz enterrado seu orgulho,
Cuja glória fenece sob um mero olhar.
O esforçado guerreiro, notável por suas batalhas,
Após mil vitórias, ao perder uma delas,
Tem seu nome riscado do livro das honrarias,
E vê esquecido tudo por que lutou.
Feliz sou eu, que amo e sou amado,
De onde não me movo nem sou movido.

SONETO 26

Senhor do meu amor, de quem, em vassalagem,
Uniu firme o teu mérito ao meu dever,
A ti envio este pedido por escrito,
Em testemunho do dever, não do meu talento;
Dever tão grande, cujo talento tão pobre quanto o meu
Parece destituído de palavras para expressá-lo,
Mas que espero que o teu bom conceito
Em teu âmago, todo despido, lhe trará;
Até que uma estrela que guie o meu gesto
Aponte-me graciosamente com a sua beleza,
E vista o meu amor maltrapilho,
Para mostrar-me merecedor de teu doce respeito.
Então, que eu ouse me gabar do amor que sinto;
Até lá, me guardarei para que não me desafies.
SONETO 27

Cansado do trabalho, corro ao leito
Para repousar meus membros exaustos de viagem;
No entanto, inicia-se uma jornada em minha mente,
Depois que a atividade de meu corpo cessa:
Assim, meus pensamentos (vindos de muito longe)
Começam uma lenta peregrinação até onde estás,
E fazem que meus olhos sonolentos não se fechem,
Encarando o negror que os cegos veem:
Exceto que a visão imaginária de minh’alma
Traz tua sombra invisível,
Que, como uma joia suspensa no escuro,
Adorna a noite turva, a renovar seus traços.
Vê! Assim, de dia, as pernas e, à noite, a mente,
Nem por mim, nem por ti, encontram paz.

SONETO 28

Como posso, então, retomar o feliz sofrimento
Ao ser impedido da bênção do descanso,
Quando a opressão do dia não cessa à noite,
Mas se oprime, dia e noite, noite e dia,
E ambos (embora inimigos por natureza)
Consintam em cumprimentar-se para me torturar,
Um por obrigação, o outro, por queixume
De que eu trabalhe ainda mais distante de ti?
Digo ao dia, para agradá-lo, que és luz,
E dou-lhe graças quando as nuvens cobrem o céu;
Assim louvo a escura tez noturna,
Quando as estrelas não brilham e tu refulges sozinha.
Mas o dia prolonga meus pesares,
E a noite faz a tristeza parecer ainda maior.
SONETO 29

Quando em desgraça, sem sorte e afastado
Dos homens, sozinho, em meu exílio,
Perturbo os Céus surdos, a gritar sem sossego,
E olho para mim, e amaldiçoo meu destino,
Sonhando ser mais afortunado,
Como homem de muitos amigos,
Cobiçando seus talentos e visão,
E aquilo que mais aprecio sinto menos satisfeito;
Mesmo, nesses pensamentos, quase me desprezando,
Feliz, penso em ti – depois em meus bens
(Como a cotovia elevando-se ao romper do dia
Das entranhas da terra), em hinos a louvar o céu;
Pois, lembrar de teu doce amor traz tanta riqueza,
Que desdenho trocar meu dote com reis.

SONETO 30

Quando, em silêncio, penso, docemente,
Sobre fatos idos e vividos,
Sinto falta do muito que busquei,
E desperdiço um tempo precioso com antigos lamentos:
Então meus olhos naufragam sem mais saber chorar,
Por queridos amigos envoltos pela noite do esquecimento,
E novamente choro o amor há tanto abandonado,
Gemendo por algo que não mais vejo:
Assim, posso sofrer as velhas dores,
E lamentar, de pesar em pesar,
Uma triste história de antigas mágoas,
Que pranteio como se não as tivesse pranteado antes.
Mas quando penso em ti, querida amiga,
Todas as perdas cessam, e a tristeza finda.
SONETO 31

Teu peito contém todos os corações,
Que eu, por não os ter, supus mortos;
E onde reina o amor, e tudo o que o amor mais ama,
E todos os amigos que pensei jazidos.
Quantas lágrimas santas e obsequiosas
Roubaram o amor sagrado de meus olhos,
Como maldição dos mortos, que agora ressurge
Entre coisas invisíveis que em ti se ocultam!
Tu és a tumba onde o amor enterrado vive,
Preso aos trunfos dos amores que partiram,
Que entregaram a ti tudo que pertence a mim;
E, por isso, tudo agora é apenas teu:
Tudo que neles amei, eu vejo em ti,
E tu (todos eles) me tens em tudo o que sou.

SONETO 32

Se sobreviveres à plenitude do meu dia,
Quando a Morte vil com o pó cobrir meus ossos,
E, por sorte, mais uma vez releres
Estes pobres e rudes versos de teu falecido amante,
Compara-os com o apuro do tempo,
E embora sejam superados por outras plumas,
Guarda-os pelo meu amor, não pela rima,
Suplantada pela excelência de homens mais felizes.
Ó poupe-me, salvo este pensamento amoroso:
‘Se a Musa de meu amigo tivesse crescido com a sua idade,
Seu amor gerou um nascimento mais caro do que este
Para cerrar as fileiras mais bem equipado;
Mas como ele morreu, e os poetas se provaram melhores,
Lerei seus poemas pelo estilo e, os dele, pelo seu amor’.
SONETO 33

Já vi muitas manhãs gloriosas cobrirem
Os cumes das montanhas com o olhar soberano,
Beijando com a tez dourada o verde dos campos,
Colorindo pálidos córregos com a divina alquimia,
Não permitindo que as nuvens baixas vaguem
Com aspecto horrendo sobre a face celestial,
E do mundo distante esconder sua visagem,
Fugindo, despercebido, para o Oeste em desgraça.
Mesmo assim, meu sol brilhou cedo, um dia,
Em todo o seu esplendor triunfante sobre o cenho;
Porém, ó dor, ele apenas foi meu por uma hora –
As brumas encobriram-no totalmente agora.
Embora ele, por isso, desdenhe o meu amor;
Os sóis do mundo manterão a sua mácula.

SONETO 34

Por que me prometeste um dia tão belo
E me fizeste viajar sem meu manto,
Deixando que nuvens baixas cobrissem meu caminho,
Ocultando tua bravura em seu lacerado fumo?
Não basta que irrompas as nuvens
Para enxugar a chuva em meu rosto abatido,
Pois nenhum homem poderá dizer uma oração
Que cicatrize a ferida sem curar a desgraça.
Nem poderá tua vergonha revelar minha dor;
Embora te arrependas, ainda assim perderei;
A tristeza do ofensor pouco alivia
Aquele que carrega a pesada cruz da ofensa.
Ah, mas as lágrimas são pérolas que o teu amor verte;
Elas são valiosas, e resgatam todos os males.
SONETO 35

Não te entristeças mais pelo que fizeste:
As rosas têm espinhos, e a prata jaz sob a lama;
As nuvens e os eclipses encobrem o sol e a lua,
E o terrível negrume vive no doce botão.
Todo homem erra, e mesmo eu aqui,
Permitindo que ouses comparar,
Minha corrupção, salvando tua omissão,
Desculpando em excesso os teus erros;
Pois teu pecado sensual eu considero –
Teu adversário é teu advogado –
E contra mim instaura-se um pleito;
Há uma guerra civil entre o amor e o ódio
Em que me torno cúmplice
Do ladrão, que, malicioso, rouba a mim.

SONETO 36

Deixa-me confessar que devemos ser iguais,
Embora nossos amores indivisos sejam um;
Da mesma forma que as manchas que ficam comigo,
Sem teu auxílio, para que eu as suporte sozinho.
Em nossos amores, há o mesmo respeito,
Embora em nossas vidas o mal nos separe,
Que, mesmo sem alterar os efeitos únicos do amor,
Consegue subtrair doces horas do amoroso prazer.
Eu jamais poderia te reconhecer,
A menos que minha culpa te envergonhe;
Nem tu publicamente com gentilezas me honrarias,
A menos que tire essa honra de teu nome.
Mas não faças isso; amo-te de tal modo,
Pois, sendo minha, de ti só direi o bem.
SONETO 37

Como um pai decrépito se regozija
De ver o filho fulgir na juventude,
Então, eu, aleijado por despeito da Fortuna,
Encontro meu consolo em tua honra e verdade.
Pois a beleza, o berço, a riqueza, a sagacidade,
Ou quaisquer dessas qualidades, ou todas, ou outras,
Permanecem assentadas em si mesmas,
Ofereço meu amor em seu nome.
Então, não sou aleijado, pobre, nem desprezado,
Enquanto esta sombra se lança sobre ele,
Que eu, em tua abundância, me satisfaço,
E em uma parte do todo vive a tua glória.
Vê o melhor, o melhor que desejo em ti;
Este é meu desejo; então sou dez vezes mais feliz.

SONETO 38

Como pode minha Musa inventar seus motivos,
Enquanto vives a derramar em meu verso
Teu doce argumento, sublime demais
Para ser traçado sobre um papel comum?
Ah, agradeça a ti mesma, se em mim
Persiste o alento que se sustenta à tua frente;
Somente o estúpido não poderia te escrever,
Quando tu mesma dás luz à invenção?
Sê a décima musa, dez vezes mais valiosa
Do que as outras nove antigas que os poetas invocam;
E aquele que te chamar, faze com que traga
Eternos versos que vivam por um longo tempo.
Se à minha leve Musa agradar esses curiosos dias,
Minha será a dor, mas tua será a rima.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

SONETO 39


Ó, como poderei com modos exultar teu valor,
Se de mim és a melhor parte?
O que podem os meus louvores trazer a mim,
E o que sou senão eu mesmo quando te elogio?
Mesmo aqui deixem que vivamos divididos,
E nosso doce amor perder seu nome,
E por esta separação eu lhe cause
Que, graças a ti, tu a mereças sozinha.
Ó ausência, que tormento provarias,
Se teu amargo lazer não te libertasse
Para entreter o tempo com pensamentos de amor –
Que o tempo e pensamentos docemente enganam –
E que ensines como serem únicos,
Ao elogiá-lo aqui, e permanecer assim.


SONETO 40


Toma todos os meus amores, meu bem, sim, toma-os todos;
O que mais tens agora que antes já não tinhas?
Nenhum amor, meu bem, que possas chamar de amor;
A mim tinhas por inteiro, antes de me teres mais ainda.
Então, se pelo meu amor tu o recebeste,
Não posso culpar-te pelo meu amor que usaste;
Mas, mesmo culpada, se porventura te enganaste,
Por orgulho do que tu mesma recusaste.
Perdoo-te por teres me roubado, gentil ladina,
Embora roubes de mim toda a minha riqueza;
Ainda assim, o amor sabe, é uma tristeza inda maior
Suportar do amor o erro do que a injúria do desamor.
Lasciva graça, em quem todo o mal se mostra,
Mata-me com teu desprezo, mas não nos tornemos inimigos.
SONETO 41

Os benditos erros que a liberdade comete
Quando por vezes me ausento de teu coração,
Tua beleza e idade bem te assentam,
Pois ainda a tentação te segue por toda parte.
Tu és gentil e, portanto, deves ser conquistado;
Tu és belo, portanto, deves ser assediado.
E quando uma mulher seduz, que filho,
Amargurado, irá deixá-la, até que tenha vencido?
Ai de mim, porém, ainda poderás me suportar,
E repelir tua beleza e evanescente juventude,
Que te conduziu ao seu desespero mesmo ali,
Onde foste forçado a quebrar uma dupla verdade:
A dela, por tua beleza, atraindo-a para ti,
A tua, por ser tua beleza falsa para mim.

SONETO 42

Por que a tens, não é este todo o meu pesar,
Mesmo que eu possa dizer quanto a amei;
Por ela ter a ti, este é todo o meu lamento,
Um amor ainda mais perdido para mim.
Amantes impuros, eu vos perdoo: –
Tu a amas, mesmo sabendo que eu a amo;
E mesmo que ela continue a abusar de mim,
Fazendo meu amigo sofrer por ela e por mim.
Se eu te perder, para o meu amor será um ganho,
E, ao perdê-la, meu amigo já não poderá tê-la;
Ao se unirem, perco os dois,
E ambos me farão arrastar esta cruz:
Mas, eis a alegria: meu amigo e eu somos um;
Doce engano! Então ela ama só a mim.
SONETO 43

Quanto mais pisco, melhor meus olhos veem,
Pois o dia todo vislumbram coisas que nada são;
Mas, quando adormeço, surges em meus sonhos,
E, luzindo no escuro, fulgem em meio ao breu;
E tu, cujo vulto reluz entre as sombras,
Cuja forma mostra-se alegre,
Na claridade, tua luz é ainda maior,
Que, ante meus olhos baços, faz tua sombra brilhar!
Como (eu diria) seriam meus olhos abençoados
Ao ver-te à luz do dia,
Quando, na calada da noite, tua sombra bela e imperfeita
Permanece sob minhas pálpebras durante o sono!
Todos os dias são noites, até que eu te veja,
E as noites, dias claros, ao mostrar-te em meus sonhos.

SONETO 44

Se o pensamento fosse a baça matéria de minha carne,
A infame distância não impediria meu caminho;
Pois, então, apesar do espaço, eu seria trazido,
De lugares bem remotos, até onde estás.
Assim, não importa, embora tenha posto os pés
Em terras mais afastadas de ti,
Pois o pensamento ágil salta por terras e mares,
Assim que imagine onde ele possa estar.
Mas, ai, mata-me pensar não ser lembrado,
Para saltar as longas distâncias aonde foste,
Mas isto, vencendo tantas terras e águas,
Devo ceder ao tempo com meu gemido,
Não recebendo tão lentamente os elementos,
Mas pesadas lágrimas, sinais de nossos lamentos.
SONETO 45

Os dois outros, o ar leve e o fogo ardente,
Estão contigo aonde quer que eu me encontre;
O primeiro, meu pensamento, o outro, meu desejo,
Entre a presença e a ausência, deslizam furtivamente;
Pois quando se vão estes rápidos elementos
A prestar-te os doces louvores do amor,
Minha vida, feita de quatro, com dois apenas
Fenece e morre, subjugada pela melancolia;
Até que a composição da vida seja sanada
Por teus lépidos mensageiros,
Que somente agora retornam, afiançando
Teu bem-estar, deixando-me em sossego.
Assim, me regozijo; porém, insatisfeito,
Rechaço-os, e torno-me ainda mais infeliz.

SONETO 46

Meus olhos e coração travam uma guerra mortal
De como repartir entre eles a visão que têm de ti:
Meus olhos rejeitam o que meu coração vê,
Meu coração, aos meus olhos, a liberdade de te ver.
Meu coração alega ser por ele que te vejo
(Um quarto nunca visto com olhos puros),
Mas os acusados negam-lhe a autoria,
E dizem que és bela somente para eles.
A demanda, sem precedentes,
Divide as opiniões, todos reféns do coração;
E por seu veredicto se determina
A parte dos olhos claros e do doce coração –
Assim: meus olhos veem o que me mostras,
E meu coração vê apenas o teu amor.
SONETO 47

Há uma união entre o que vejo e sinto,
E o bem que cada coisa verte de uma em outra:
Quando meus olhos anseiam por um olhar,
Ou o coração apaixonado, brando, a suspirar,
Meus olhos celebram a imagem do meu amor,
E, diante do banquete, se rende a minha emoção;
Em outro tempo, meus olhos se aninham ao sentimento,
E se unem aos seus pensamentos amorosos:
Então, seja por tua imagem ou pelo meu amor,
Estás, mesmo distante, sempre comigo;
Pois não corres mais do que meus pensamentos,
E estou sempre com eles, e eles, contigo;
Ou, se adormecem, a tua imagem à minha frente
Desperta meu amor para a alegria dos olhos e do coração.

SONETO 48

Que cuidado tomei quando em meu caminho
Ao acaso surgiram inutilidades,
Que para mim continuariam intocadas
Pelas mãos da falsidade, entregues à confiança.
Mas tu, para quem minhas riquezas não são nada,
Zelo mais valoroso, agora meu maior pesar,
Tu, a mais amada e meu único cuidado,
Do mais terrível ladrão te tornas presa,
A ti, não encerrei em uma arca,
Salvo onde não estás, embora sinta que estejas
Dentro da gentil clausura do meu peito,
De onde poderás ir e vir a teu bel-prazer;
E, mesmo assim, temo que serás roubada,
Pois a verdade nos rouba quanto maior o prêmio.
SONETO 49

Contra o tempo (se este tempo vier)
Quando rejeitares os meus defeitos,
Quando o teu amor fizer o seu maior lance,
Chamada a explicar-se por teu respeito;
Contra o tempo quando passares como estranha,
E mal me cumprimentares com o teu olhar em fogo,
Quando o amor transformado daquilo que era
Encontrar motivos de reconhecida gravidade;
Contra esse tempo, eu me protejo
Conhecendo os meus próprios desígnios,
E, assim, contra mim ergo a minha mão,
Para resguardar as tuas razões de direito.
Para me deixares, pobre de mim, empregas a força da lei,
Pois, a razão do amor, não posso alegar os meus motivos.

SONETO 50

Com que pesar enfrento a jornada,
Quando o que procuro (o triste fim do meu caminho)
Mostra-me, docilmente, a resposta que devo dar:
“Assim as milhas são marcadas para longe de teu amigo”.
O animal que me carrega, cansado do meu pranto,
Cavalga firme, suportando o peso que levo comigo,
Como se, por instinto, o animal soubesse
Que o cavaleiro de ti não quisesse se afastar.
As esporas sangrentas não o atiçam
Que, por vezes, o ódio toca-lhe por dentro,
E, prontamente, responde com um grunhido
Mais agudo para mim do que ao esporeá-lo;
Pois o mesmo grunhido põe isto em minha mente:
Minha tristeza jaz à frente e, minha alegria, atrás.
SONETO 51

Assim pode meu amor desculpar a velada ofensa
De minha torpe montaria quando de ti me afasto:
Por que eu deveria fugir de onde estás?
Até retornar, não preciso te escrever.
Ó que desculpa dará meu pobre animal,
Quando a galope parecerá se demorar?
Então, eu deveria cavalgar o vento –
A velocidade alada é desconhecida para mim.
Assim, nenhum cavalo acompanhará meu desejo;
Portanto, o desejo, do amor que se faz perfeito,
Negará todo o corpo em sua célere carreira;
Mas o amor, pelo amor, desculpará meu alazão:
Pois, ao me afastar de ti, trotou lentamente,
Correrei para ti, e a ele deixarei partir.

SONETO 52

Serei como o rico, cuja abençoada chave
Conduz ao seu doce e bem guardado tesouro,
Que nem sempre vem admirar
Para não perder o prazer de vê-lo.
Por isso, as festas são tão solenes e raras –
Esparsamente marcadas ao longo do ano,
Como pedras valiosas, delicadamente dispostas,
Ou suntuosas joias incrustadas na tiara.
Assim é o tempo que a mantém junto ao meu peito,
Ou como o guarda-roupa que esconde o vestido,
Para transformar o instante em mais especial ainda
Ao desfolhar novamente seu orgulho aprisionado.
Abençoada sejas, cujo valor ressalta,
Ao ter-te, o triunfo; ao perder-te, a esperança.
SONETO 53

De que substância és feita,
Que milhões de estranhas sombras te envolvem?
Como todos têm, cada um, a sua sombra,
E tu, sozinha, podes emprestar a elas.
Descreve Adônis, cuja imitação
É parcamente feita à tua imagem;
E sobre o rosto de Helena toda arte da beleza se define,
E tu, em mosaicos gregos, de novo és pintada;
Fala da primavera, e do frescor do ano;
Aquela que exibe a sombra de tua formosura,
E o outro, como teu coração se assemelha,
E tu, em toda forma abençoada e conhecida.
Tomas parte de toda graça visível,
Mas, nem tu, nem ninguém mantém fiel o coração.

SONETO 54

Ó, muito mais linda parece a beleza
Docemente ornada pela verdade!
A rosa é linda, mas a julgamos ainda mais bela
Pelo suave odor que exala.
As rosas silvestres têm o mesmo tom
Que as rosas perfumadas e coloridas,
Presas a seus espinhos, e brincam, voluptuosas,
Quando o hálito do verão as abre em botão;
Mas, como a aparência é sua única virtude,
Vivem esquecidas, e murcham abandonadas –
Morrendo solitárias. Doces rosas não fenecem;
De suas ternas mortes exalam os mais doces perfumes,
Assim como de ti, linda e amável donzela,
Ao feneceres, tua verdade destilará nos versos.
SONETO 55

Nem o mármore nem os monumentos luxuosos
Dos príncipes viverão mais que este poderoso verso,
Mas brilharás ainda mais neste poema
Do que a intocada gema envolta pela névoa do tempo.
Quando a guerra inútil destruir todas as estátuas,
E as disputas surgirem no trabalho diligente,
Nem deixarão de Marte a espada, nem do embate arder
O fogo fátuo o límpido registro de tua memória.
Avançarás contra a morte e toda a hostilidade obliterada;
Teu ânimo ainda encontrará lugar
Mesmo aos olhos da posteridade,
Que carrega este mundo ao seu cataclismo.
Então, até o julgamento que tu mesmo fazes,
Aqui vives e permaneces nos olhos de teus amores.

SONETO 56

Doce amor, sê forte; não digas que
Teu ardil seja mais bruto que teu apetite,
Que somente hoje alias e alimentas,
Depois aguçado em seu antigo poder:
Então, amor, sê tu mesma; embora hoje preenchas
A fome de teus olhos, mesmo plenos,
Amanhã novamente vejam, e não matem
O espírito do amor com perpétuo tédio.
Deixa este triste ínterim ser como o oceano
Que divide a praia, onde dois novos seres
Diariamente vêm até as margens, e, ao assistirem
Retornar o amor, mais abençoada se torna esta visão;
Ou mesmo o inverno, que, cheio de cuidado,
Faz o estio ser três vezes mais raro e ansiado.
SONETO 57

Sendo teu escravo, o que fazer senão atender
Às horas e aos chamados de teu desejo?
Não tenho tempo algum para mim,
Nem serviços a fazer, até que me peças.
Nem ouso repreender a hora do mundo sem fim,
Enquanto eu, minha soberana, sigo tuas horas,
Nem penso que a solidão da ausência seja amarga,
Após dispensar teu servo de teu serviço;
Nem ouso questionar com meus ciúmes
Onde andarás, ou imaginar o que fazes,
Mas, como um triste escravo, sento-me e não penso,
Salvo, onde estás e quão feliz fazes a todos:
Então, que tolo é o amor, que, sob teu jugo
(Embora nada faças), nenhum mal o assombre.

SONETO 58

Que Deus me perdoe, por me tornar teu escravo,
Que eu deva pensar em velar tuas horas de prazer,
Ou para ti contar os momentos de ansiedade,
Sendo teu vassalo disposto a estar à tua mercê.
Ó deixa-me sofrer, sob tua vista,
A ausência aprisionada de tua liberdade,
E domada pela paciência para sofrer a cada vez
Sem te acusar de me injuriares.
Estejas onde estiveres, teu jugo é tão forte,
Que podes privilegiar teu tempo
Para o que quiseres; a ti somente cabe
Perdoar-te por teus próprios crimes.
Devo aguardar, embora esperar seja o inferno,
Sem culpar teu prazer, seja ele o mal ou o bem.
SONETO 59

Se não há novidade, senão a que havia
Antes, como se conformará nosso cérebro,
Que, ocupado em inventar, suporta
O segundo fardo de um primeiro filho!
Ó esse fato poderia, com olhar antigo,
Mesmo passados quinhentos dias,
Mostrar-me tua imagem em um velho livro,
Uma vez que a mente já conheça seu caráter!
Que eu possa ver o que o velho mundo diria
Diante da maviosa conformação de teu rosto –
Sejamos alterados, ou sejamos melhorados,
Ou mesmo que a revolução nada altere.
Ó certamente sou a sabedoria do passado,
Que homens piores cobriram de excedidos elogios.

SONETO 60

Como as ondas se arremessam contra as pedras,
Aproximam-se os minutos de seu fim;
Cada um ocupando o mesmo espaço,
Num incansável e destemido movimento.
Do nascimento, após vir à luz,
Engatinhamos até a maturidade, e somos coroados,
Vencendo estranhos eclipses perante sua glória,
E o Tempo, dado, que hoje nos lega seu presente.
Os dias firmam seu passo na juventude,
E cavam suas sendas sobre a fronte da beleza;
Alimentam-se da raridade da verdade da natureza,
Mas nada impede o firme corte de sua foice.
Porém, às vezes, espero que meu verso prevaleça,
Elevando teu valor, apesar de seu cruel desmando.
SONETO 61

É teu desejo que tua imagem mantenha abertas
Minhas pesadas pálpebras nesta fatigada noite?
Desejas que meu sono se quebre,
Enquanto as sombras zombam ao me ver?
É teu espírito que envias até a mim
Tão longe de casa, para me bisbilhotar,
Para desvendar meus erros e ociosas horas,
Mantendo vivo e aceso o teu ciúme?
Ah, não! Teu amor, mesmo imenso, não é tão grande;
É meu amor que deixa meus olhos despertos,
Meu amor verdadeiro que corrói meu descanso,
Para manter-me em vigília por tua causa.
A ti vigio, enquanto ao longe despertas,
Tão distante de mim, e de outros, tão perto.

SONETO 62

O pecado do amor-próprio toma meus olhos,
E toda a minha alma, e todo o meu corpo;
E para este pecado não há qualquer remédio,
Tão entranhado está em meu coração.
Penso que nenhum rosto seja tão belo quanto o meu,
Não há forma mais verdadeira, nem jamais vista,
E por mim meu próprio valor se define,
Por superar qualquer outro.
Mas quando o espelho me revela quem sou,
Abatido e carcomido pelos anos,
Meu amor-próprio se contraria;
Ser tão autocentrado seria uma iniquidade.
Tu és (eu mesmo) aquele que em meu nome elogio,
Pintando meus anos com a beleza de teus dias.
SONETO 63

Contrário o meu amor será como sou hoje,
Com a mão injuriosa, esmagada e gasta pelo Tempo;
Quando as horas tiverem secado o sangue e coberto o cenho
Com linhas e rugas; quando a sua fresca manhã
Ascender à alta noite senil,
E todas as belezas das quais hoje ele é rei
Minguarem, ou sumirem de vista,
Roubando o tesouro de sua primavera;
Por esse tempo agora eu me oponho
Contra a faca cruel da confusa idade,
Que ele jamais ceifará da lembrança
A suavidade do meu amor, embora lhe tire a vida.
Nestas negras linhas ficará a sua beleza,
E que viverão, mantendo o meu amado vivo.

SONETO 64

Ao ver a cruel mão do tempo apagar
Dos ricos o orgulho graças à decadência da idade;
Quando, por vezes, as altas torres são destruídas,
E o eterno escravo do metal entregue à mortal ira;
Ao ver o oceano faminto ganhar
Vantagem sobre os domínios das encostas;
E a terra firme avançar sobre o braço de água,
Equilibrando-se entre as perdas e ganhos;
Ao ver tal mudança de condição,
Ou a própria condição confundida, a decair,
Assim ensinou-me a pensar a ruína:
Que o tempo virá e levará o meu amor.
Este pensamento é mortal, sem outra escolha
Senão lamentar ter o que se teme perder.
SONETO 65

Se nem o bronze, a pedra, a terra, o mar infinito,
Senão a triste mortalidade que supera o seu poder,
Como pode a beleza defender-se diante da fúria,
Cuja ação não é mais firme que uma flor?
Como pode a cálida aragem de estio superar
O desastroso ataque dos exaustivos dias,
Quando sólidas montanhas não são indevassáveis,
Nem portões de aço poupam o tempo da ruína?
Ó temível pensamento! Onde se esconderá
A joia mais magnífica do gélido abraço do tempo?
Ou que mão poderosa deterá seus ágeis pés,
Ou quem proibirá a destruição de sua beleza?
Ah, ninguém, a menos que um milagre aconteça:
Que esta negra tinta possa resplandecer o meu amor.

SONETO 66

Cansado de tudo isto, uma morte pacífica imploro:
Para impedir que nasça o mendigo,
E toda a necessidade termine em descaso,
E a fé mais pura seja tristemente preterida,
E a honra vergonhosamente deslocada,
E a virginal virtude rudemente pisoteada,
E a mais completa perfeição erroneamente desgraçada,
E a força desarmada pelo claudicante,
E a arte amordaçada pela autoridade,
E a loucura controlada pela medicina,
E a verdade confundida com a simplicidade,
E o bem cativo atenda à insanidade.
Cansado de tudo isto, disto tudo me afastaria,
Exceto ao morrer de abandonar o meu amor.
SONETO 67

Ah, onde deveria viver infecto
E com sua presença favorecer a impiedade,
Dando vantagem ao pecado,
E aliando-o à sua companhia?
Por que deveria falsificar seu retrato,
E dar aos mortos o tom de sua vívida cor?
Por que deveria a pouca beleza buscar, trôpega,
Sombras róseas, se sua cor rosada é verdadeira?
Por que ele deveria viver, agora que a natureza ruiu,
Suplicando ao sangue que suba à tona por suas veias?
Pois ela não tem outro provedor senão o dele,
E orgulhoso de muitos, vive de seu proveito,
Ó, ela o alimenta, para mostrar a riqueza
Que há muito tinha, antes de vencer o mal.

SONETO 68

Seu rosto revela o mapa de outros dias,
Quando a beleza vivia e fenecia como as flores,
Antes que nascessem esses malignos e belos sinais,
Ou que ousassem vir cobrir-te a fronte;
Antes dos dourados cachos dos finados,
O direito dos sepulcros fossem cortados
Para viver outra vida em outra cabeça,
Os cachos mortos da beleza a adornar outro.
Nele as sagradas e antigas horas se veem
Sem nenhum ornamento, a face despida e verdadeira,
Sem reviver com o verdor de outro verão,
Sem roubar um velho adorno para usá-lo como novo;
E ele como um mapa a natureza guarda,
Para mostrar com falsa Arte como a beleza fora um dia.
SONETO 69

Estas partes que os olhos do mundo vislumbram
Nada querem que a vontade dos corações cure;
Todas as línguas (a voz das almas) te dão o que é teu,
Murmurando a verdade, mesmo dita por inimigos.
Teu semblante com elogios aparentes é coroado,
Mas essas mesmas línguas que te reconhecem
Em outros tons confundem os elogios,
Vendo mais do que os olhos veem.
Eles divisam a beleza de tua mente,
E adivinham a tua dimensão pelos teus atos;
Então, distorcem os seus pensamentos, embora vejam bem,
Emprestando às tuas belas flores um mau odor.
Mas como teu perfume não se iguala ao que mostras,
Este é o chão onde deves crescer como um ser comum.

SONETO 70

Que tuas culpas não sejam teus defeitos,
Pois a marca da calúnia nunca é bela;
O adorno da beleza torna-se suspeito,
Um corvo a voar na brisa mais amena.
Se agires bem, a injúria nada faz senão
Engrandecer o teu valor com o tempo;
Os vermes refestelam-se nos doces botões,
E tua beleza se mostra imaculada.
Superaste a armadilha da juventude,
Sem assaltos, nem vitórias;
Embora o elogio não possa ser ofertado
Para impedir uma inveja ainda maior.
Se as suspeitas de erros não te mascararem,
Vencerás sozinha todos os corações.
SONETO 71

Não chores mais por mim depois que eu morrer,
Ao ouvir o sombrio e escuro sino
Anunciando a todos que parti
Deste mundo vil, habitado por vermes ainda mais vis:
Não, se leres este verso, não lembres
Da mão que o escreveu; pois te amo tanto,
Que prefiro ser esquecido de teus doces pensamentos,
Se lembrar de mim te causar algum pranto.
Ah, se (eu digo) leres este verso
Quando eu já estiver misturado à terra,
Não ensaies repetir meu pobre nome;
Mas deixa teu amor apodrecer com minha vida:
A menos que o mundo pondere e perscrute tua dor,
E despreze a ti, por mim, após minha partida.

SONETO 72

Ó, a menos que o mundo te obrigue a dizer
Que méritos tanto amavas em mim
Após a minha morte, amor, esquece-me;
Pois nada podes provar sobre o meu valor,
A menos que inventes uma grande mentira
Para fazer por mim mais do que eu mesmo,
E imputar mais elogios depois que eu morrer
Do que a dura verdade poderia me conceder.
Ó, a menos que teu amor agora seja falso,
Que tu, por amor, mintas para falar bem de mim,
Meu nome seja enterrado com meu corpo,
E deixe de viver para não vexar a mim nem a ti;
Pois me envergonho de tudo que faço;
E tu, também, por amar o que não tem valor.

SONETO 73


Vês em mim esta época do ano

Quando poucas ou nenhuma folha amarelecida

Nos galhos que tremem ao vento frio,

Coros desertos onde os doces pássaros cantavam.

Em mim, vês o crepúsculo deste dia

Após o naufrágio do sol a Oeste,

Que, pouco a pouco, a noite escura afasta,

A outra face da Morte, que tudo silencia.

Em mim, vês o brilho deste fogo

Que permanece nas cinzas de sua juventude,

Como o leito de morte onde deve expiar,

Consumido pelo ardor que o nutria.

Isto vês, que fortalece o teu amor,

Para amar o que logo irás abandonar.


SONETO 74


Alegra-te: quando a dura prisão

Sem dó para longe me arrastar,

Minha vida tem neste verso um interesse,

Que, em memória, ainda em ti continuará.

Quando o revires, verás de novo

Tudo o que consagrei a ti.

A terra terá apenas a terra, que a ela pertence;

Meu espírito é teu – a melhor parte de mim:

Então, quando dissipares o que restar de tua vida,

Presa dos vermes, meu corpo sucumbido;

Na covarde conquista de um punhal maldito,

Haverá muito pouco de ti para ser lembrado.

Seu valor está no que ele contém,

E isto é o que vale e, este sim, ficará contigo.

SONETO 75


És, para mim, como o alimento para a vida,

Ou a chuva amena para o solo no tórrido verão;

E, para teu bem-estar, me esforço

Entre a miséria e a riqueza:

Orgulhoso com o desfrute, e logo

Duvidando que a idade roube seu tesouro;

Agora espero estar apenas contigo,

Então, melhor para que o mundo me veja bem;

Por vezes, comemorando à nossa vista,

E aos poucos ansiando por um olhar;

Possuindo ou perseguindo qualquer prazer,

Exceto aquilo que se tem ou seja tirado de ti.

Assim, jejuo e sobrevivo a cada dia,

Ou a tudo devoro, o tempo todo.


SONETO 76


Por que meu verso está tão minguado,

Sem variação ou rápidas mudanças?

Por que com o tempo não olho para o lado

Buscando novos métodos e estranhos modos?

Por que escrevo da mesma forma, a mesma coisa,

E deixo à parte a invenção,

Que cada palavra se torne minha conhecida,

Mostrando-me de onde vem?

Ó, saiba, amor, que é para ti que escrevo,

E tu e o amor sois ainda meus assuntos;

Então, o melhor que faço é reescrever as velhas palavras,

Aplicando novamente o que já foi usado;

Como o sol que, a cada dia, é sempre velho e novo,

Assim é o meu amor, dizendo tudo que se diz.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

SONETO 77

Teu espelho te mostrará como a beleza se extingue,
Teu relógio, como os preciosos minutos se gastam;
As folhas ausentes ficarão marcadas em tua mente,
E a lição que deverás aprender deste livro:
As rugas que teu fiel espelho te mostrará
Cavarão sulcos em tua lembrança;
Tu, pela sombra dos ponteiros do relógio, verás
O andar sub-reptício do tempo até a eternidade;
Vê o que tua memória não pode suportar,
Aceitando esses desperdícios, e encontrarás
Essas crianças alimentadas, livres de tua mente,
Para conhecer, de outro modo, teu pensamento.
Esses fatos, sempre que os leres,
Ser-te-ão proveitosos, e muito enriquecerão teu livro.

SONETO 78

Tantas vezes invoco-a como minha Musa,
E encontro auxílio para meu verso
Toda vez que uso minha pena,
E por ti sua poesia é aspergida.
Teus olhos, que ensinaram os mudos a cantar,
E a pesada ignorância a planar,
Criou plumas para a sábia asa,
E deu à graça majestade em dobro.
Mesmo me orgulhando do que compilo,
Cuja influência vem e brota de ti;
Na obra alheia apenas consertas o estilo,
E as artes com teu dom são abençoadas;
Mas tu és toda a minha arte, e avanças
Tão alto quanto aprendo sobre o que nada sei.
SONETO 79

Ao pedir para mim o teu auxílio,
Meu verso recebia sozinho toda a tua graça;
Mas agora perco o ritmo das palavras,
E minha frágil Musa muda de lugar.
Te dou, amor, teu adorável pretexto
De merecer o suor de uma pena mais valiosa,
Embora de ti teu poeta invente,
Ele rouba de ti, e a ti novamente paga.
Ele te dá a virtude, e subtraiu esta palavra
De teus atos; ele te dá a beleza
Ao vê-la em teu rosto; ele não pode
Elogiar-te senão naquilo que já existe em ti.
Então, não lhe agradeças pelo que ele te diz,
Pois o que ele te deve é o mesmo que lhe pagas.

SONETO 80

Ó, como enfraqueço ao escrever sobre ti,
Sabendo que um espírito melhor usa teu nome,
E do elogio emprega toda a força
Para fazer-me calar, ao falar de tua fama.
Mas como teu valor, vasto como o oceano,
Humilde como a vela mais valente,
Meu latido, muito inferior ao dele,
Emerge sobre as tuas correntezas.
Teu menor auxílio me manterá emerso,
Enquanto ele cavalga tuas silentes profundezas;
Ou, náufrago, sou um barco inútil,
Ele, forte, alto e orgulhoso.
Então, se ele sobreviver e eu for dispensado,
Eis o pior: meu amor selou minha ruína.
SONETO 81

Ou viverei para escrever o teu epitáfio,
Ou sobreviverás quando na terra eu já tiver apodrecido;
Daqui a morte não poderá arrancar a tua memória,
Embora de mim cada parte seja esquecida.
Teu nome aqui .cará imortalizado,
Embora eu, depois de partir, morra para o mundo;
A terra me reservará uma cova rasa,
Enquanto jazerás sepulta perante todos.
Meu verso frágil erigirá a ti um monumento,
Que olhos divisarão no futuro,
E línguas futuras mencionarão o teu ser,
Quando todos deste mundo já tiverem ido.
Ainda viverás (eis a virtude de minha pena)
No hálito da boca de outros homens.

SONETO 82

Não quero que desposes a minha Musa,
E, assim, deixes de ler
As palavras dedicadas que os escritores usam
Sobre seus belos objetos, abençoando seus livros.
Tu és tão bela em saber quanto em cor,
Colocando o teu valor além do meu louvor;
E assim te vês forçada a buscar de novo
Um olhar mais fresco que já passou.
Faze isso, amor; embora quando vejam
Que toques duros empresta a retórica,
Tu, minha bela, terias simpatizado
Com palavras simples por teu verdadeiro amigo;
E suas cores grosseiras deveriam ser mais bem usadas
Para enrubescer as faces, daquilo que sobra em ti.
SONETO 83

Jamais vi precisares de cores,
E, assim, não há como pintar a tua beleza;
Supus (ou pensei supor) que excedesses
O legado cru de um poeta;
E, portanto, adormeci por tua causa,
Que tu, ao existir, pudesses mostrar
Quanto uma moderna pena deixa de escrever,
Falando de valor, do valor que cresce em ti.
Tu imputaste este silêncio pelo meu pecado,
Que será a minha glória, mesmo sendo surdo;
Pois não impeço a beleza, embora mudo,
Quando outros dariam a vida e encontrariam a morte.
Há mais vida em um de teus belos olhos
Que ambos teus poetas conseguem louvar.

SONETO 84

Quem diz mais? Qual deles diz mais,
Do que este rico elogio – de quem tu és,
Em cujo confinamento está guardado
O modelo onde crescem teus pares?
A magra penúria da pena vive
De não retirar a glória de seu objeto;
Mas aquele que escreve sobre ti, se puder dizer
Quem tu és, assim dignifica a sua história.
Deixa-o copiar o que está escrito em ti,
Sem piorar o que a natureza deixou claro,
E que ela dê fama à sua inteligência,
Tornando seu estilo admirado em toda a parte.
Tu, às tuas bênçãos de beleza, acrescentas uma praga,
Teu gosto por elogios torna-os piores.
SONETO 85

Minha silente Musa mantém seu silêncio,
Enquanto os elogios a ti são ricamente reunidos,
Louvando teu caráter com dourada pena
E belas frases exclamadas por todas as Musas;
Eu bem penso, enquanto outros escrevem bem,
E, como o iletrado, digo, “Amém”
Aos hinos que o ilustre espírito louva
Tão polido quanto a refinada pluma.
Ao ouvir loas a ti, digo, “Sim, é verdade”,
E à maioria, acrescento algo além,
Mais isto eu penso, cujo amor por ti
(Embora as palavras logo venham), firma o seu lugar.
Então, outros, por respeitar o que é dito,
Eu, por ser tolo, o que penso, digo.

SONETO 86

Foi a vela enfunada de seu grande verso,
Destinado a receber o prêmio de tua preciosidade,
Que meus pensamentos maduros conjuraram,
Matando-os no ventre onde cresceram?
Foi seu espírito, ensinado pelos ares a escrever
Acima de ditames mortais o que me aniquilou?
Não, nem ele, nem seus noturnos confrades
Ao ajudá-lo atormentaram o meu poema.
Nem ele, nem aquele amável fantasma familiar,
Que noturnamente instiga-lhe a inteligência,
Vitoriosos, não podem gabar-se de meu silêncio;
Não adoeci por medo de nada disso.
Mas quando te ergueste para dizer seu verso,
Então perdi o senso – o pouco que eu já tinha.
SONETO 87

Adeus! És muito cara para que eu te tenha,
E bem conheces o teu próprio valor:
O privilégio de teu peso te liberta;
Minha devoção a ti é toda determinada.
Como posso ter-te, senão por teu favor?
E, diante de tanta riqueza, que fiz por merecê-la?
A causa do presente que me é dado é meu desejo,
E, assim, meu direito me é subtraído.
Tu mesma marcaste teu valor sem o saber,
Ou a mim, a quem o deste, por engano;
Pois tua grande dádiva, de mim arrancada,
Retorna à tua casa, melhor considerada.
Assim, tive a ti, como um sonho demasiado:
Um rei ao dormir e, ao despertar, um exilado.

SONETO 88

Quando estiveres disposta a me desprezar,
E expor meus méritos ao escárnio,
Eu, ao teu lado, contra mim mesmo lutarei,
E provarei tua virtude, embora seja teu o perjúrio.
Com minhas fraquezas bem expostas,
Por ti posso engendrar uma história
De ocultas falhas, das quais sou acusado,
Que, ao me pôr a perder, te recobrirá de glória.
E eu disso também sairei vencedor,
Pois, dirigindo a ti meus amáveis pensamentos,
As injúrias que inflijo contra mim,
Ao te dar vantagem, dou-as em dobro a mim.
Assim é o meu amor, assim a ti pertenço,
E, por teu direito, suportarei todo o engano.
SONETO 89

Dize-me que me abandonas por um erro meu,
E te explicarei a razão de minha ofensa;
Dize-me que fui fraco, e eu aquiescerei,
Sem opor defesa alguma aos teus motivos.
Não podes, amor, desgraçar-me assim,
Determinando a forma ante teu desejo,
Como será minha desgraça saber a tua vontade.
Reconhecerei a falta, e parecerei estranho,
Ausentar-me-ei de teu lado e, em minha língua,
Não mais viverá teu doce e amado nome,
A menos que eu erre, por ser demais profano,
E, alegre, revele a nossa velha amizade.
Por ti, contra mim mesmo, jurarei lutar,
Pois a quem odeias, jamais poderei amar.

SONETO 90

Odeia-me, se quiseres; se for agora,
Enquanto o mundo censura meus atos,
Une-te ao escárnio da fortuna, faze-me vergar,
E não mais tornes a me pisotear.
Ah, quando meu coração se afastar desta tristeza,
Não retomes um cansado lamento;
Que a manhã chuvosa não suceda a noite de vento,
Para perpetuar esta proposital derrota.
Se me deixares, não me abandones ao final,
Após outras mágoas terem causado o seu dano,
Mas, no princípio, para experimentar
Antes o pior da força do destino;
E as outras dores, que hoje assim parecem,
Comparadas a te perder, nada mais serão.
SONETO 91

A uns, o berço dá a glória, a outros, o talento,
A uns, a riqueza, a outros, a força,
A uns, as vestes, mesmo espaventosas,
A uns, suas águias e cães, a outros, seus cavalos,
E todo humor provê o seu próprio prazer,
Vendo alegria acima de tudo o mais;
Mas essas questões de nada me servem;
Supero tudo isso com um único trunfo.
Teu amor é mais que um berço de ouro,
Mais rico que a riqueza, mais caro do que roupas,
Mais prazeroso que águias e cavalos;
E tendo a ti, desdenho de todo o humano orgulho –
Apenas triste por um motivo: que possas privar-me
De tudo, tornando-me o mais infeliz.

SONETO 92

Embora simules a tua pior faceta,
O fim de tua vida assegurou o meu;
E não haverá vida além do teu bem-querer,
Por este depender apenas de teu amor.
Assim não preciso temer o maior dos males,
Quando o menor deles puser fim à minha vida.
Vejo que me cabe uma condição ainda melhor
Do que a de depender do teu humor.
Não podes humilhar-me com tua inconstância,
Pois minha vida jaz em tua revolta.
Ó, que felicidade encontro,
Feliz por teu amor, feliz por enfim morrer!
Mas o que é tão abençoado que não tema a mácula?
Poderás ser falsa e, mesmo assim, a tudo ignoro.
SONETO 93

Assim vivo, supondo-te verdadeira,
Como um marido traído; assim a face do amor
Parecerá amorosa, embora, diversa, se altere –
Voltando a mim os olhos, e o coração, à outra parte.
Pois em teus olhos não pode haver ódio,
Assim nisso não percebo a tua mudança.
De muitas formas a história do falso coração
Se escreve em estranhas alterações de humor;
Mas o céu, ao criar-te, decretou
Que em teu rosto o doce amor sempre vivesse;
Teu olhar não expressaria senão a doçura
Que passasse por tua mente ou teu coração.
Tal a maçã de Eva aumenta tua beleza,
Se tua doce virtude não te responder em vão!

SONETO 94

Aqueles que têm o poder de ferir e nada farão,
Que não fazem o que demonstram,
Que ao impelir outros, são como pedra,
Imóveis, frios, e imunes à tentação –
E por direito caem nas graças divinas,
E herdam da natureza as riquezas de seu custo;
Eles são os senhores e donos de si mesmos,
Os outros, apenas os servos de sua excelência.
A flor do verão é doce para a estação,
Embora para si mesma apenas viva e feneça;
Mas se essa flor for ferida em sua essência,
A erva daninha mais singela arrancará a sua honra;
Pois o mais doce se torna amargo por seus feitos;
Lírios mais fétidos do que as ervas daninhas.
SONETO 95

Que doce e amorosa transformas a vergonha,
Que como um câncer na perfumada rosa
Realça a beleza de teu próprio nome!
Ó, com que doçuras envolves teus pecados!
A língua que conta tua história,
Comentando lasciva teu divertimento,
Não pode desprezar, como se elogiasse,
Dizendo teu nome, bendizendo a maldição.
Ó, que mansão apreendeu esses vícios
Que para habitá-lo escolheu a ti,
Onde o véu da beleza esconde toda a mácula,
E tudo diante dos olhos se embeleza!
Atenção, meu coração, para este grande sortilégio:
Se mal usada, a faca mais afiada perde seu fio.

SONETO 96

Alguns dizem ser teu erro a juventude; outros, a lascívia;
Outros dizem ainda que a juventude e o ânimo dão-te graça.
Tanto a graça quanto os erros são bem ou mal amados;
Transformas faltas em bênçãos como bem te aprazem.
Como no dedo de uma rainha coroada
A mais simples joia será mais cara,
Assim são os erros que diviso em ti,
Traduzidos como verdade e tidos como autênticos.
Quantas ovelhas pode o astuto lobo enganar,
Se na ovelha pudesse se transformar!
Quanto assombro não irias afastar,
Se usasses o poder concedido por teus bens!
Mas não faças isso; amo-te de tal modo, que
Por seres minha, digo que tudo fazes à perfeição.
SONETO 97

Como o inverno, tornou-se minha ausência
De ti, o prazer com que passou o ano!
Que frio senti, que dias negros eu vi!
A estiagem de dezembro espalhou-se por toda a parte!
E longe .cava, então, o verão,
O próximo outono, crescendo com toda a força,
Suportando o luxurioso peso do início,
Como úteros viúvos após a morte de seus senhores;
Embora esse farto assunto me pareça
A esperança de órfãos, e de frutos sem ascendência,
Pois o verão e seus prazeres servem a eles,
E, embora distante, os mesmos pássaros emudeçam;
Ou, se cantam, emitem um trinado tão mortiço,
Que as folhas empalidecem, por temerem o inverno.

SONETO 98

De ti me afastei na primavera,
Quando o orgulhoso abril, todo aprumado,
Em tudo pôs um sopro de juventude,
Que o plúmbeo Saturno se riu e com ele saltou.
Embora nem os bandos de pássaros, nem o doce perfume
De diferentes .ores em cor e odor
Poderiam me fazer contar uma história de verão,
Ou tirá-las do farto regaço onde vicejam;
Não me surpreendi com a brancura do lírio,
Nem elogiei o carmim intenso da rosa;
Eram apenas doces, apenas figuras de encanto,
A imitarem a ti, tu, modelo de todas elas.
Embora ainda parecesse inverno, e tu, à distância,
Como com tua sombra, eu, com elas, brinquei.
SONETO 99

A violeta exibida, assim a reprovei:
“Doce ladra, de onde roubaste o suave perfume,
Senão do alento do meu amor? O orgulho róseo
Que vive nas faces macias de tua compleição,
Tiraste grosseiramente das veias da minha amada”.
O lírio que condenei em tua mão,
E as folhas de orégano dispersas em teu cabelo;
As rosas, medrosas, calaram-se com seus espinhos,
Uma, corada de vergonha; outra, lívida de desespero;
A terceira, nem pálida, nem rubra, a ambas roubou,
E para seu roubo, juntou o teu hálito;
Mas, para seu furto, orgulhosa de crescer,
Um vingativo câncer consumiu-a até morrer.
Vislumbrei inda mais .ores, embora não visse nenhuma,
Senão a doçura ou a cor que de ti roubou.

SONETO 100

Musa, onde estás, que há tanto tempo te esqueces
De dizer aquilo que te dá todo o teu poder?
Usaste teu furor em uma canção espúria,
Reduzindo a força para emprestar-lhes tua luz?
Volta, esquecida Musa, e redime logo
Em doces horas o tempo inutilmente despendido;
Canta para os ouvidos de quem te estima,
E dá, à tua pluma, talento e voz.
Levanta, leve Musa, vê na suave face do meu amor
Se o Tempo a marcou com alguma ruga:
Se há, ri da decadência,
E despreza os despojos do Tempo por toda a parte.
Dá a meu amor fama mais rápido do que o Tempo gasta a vida;
Para que, de sua foice, me afastes a encurvada lâmina.
SONETO 101

Ó, negligente Musa, que desculpas me darás
Por faltares com a verdade tingindo-a com a beleza?
Do belo e da verdade depende o meu amor;
E tu, também, para te tornares digna.
Responde, Musa: não me dirás, alegremente,
“A verdade não precisa de tom por ter sua própria cor,
Nem a verdade, de lápis para desenhá-la;
Mas o bom é o melhor, se jamais for corrompido?”–
Por ele não precisar de elogios, te entorpecerás?
Não desculpes o silêncio; por depender de ti
Para fazê-lo viver além da dourada tumba,
E ser aclamado longamente no porvir.
Assim, cumpre teu ofício, Musa; te ensinarei como
Fazê-lo parecer profundo então como se parece agora.

SONETO 102

Meu amor se fortalece, embora não pareça mais forte;
Não amo menos, embora não demonstre tanto;
O amor anunciado, cuja rica estima
A língua de seu dono difunde por toda a parte.
Nosso amor era jovem, então, na primavera,
Quando queria saudá-lo com meus amavios;
Como o rouxinol que canta assim que o verão principia,
E interrompe seu trinado à espera de dias mais maduros:
Não que o verão seja menos agradável agora
Do que seus tristes hinos que a noite silenciam,
Mas a louca música pesa em seus ramos,
E as doçuras perdem seu delicioso gosto.
Assim, como ela, por vezes também me calo,
Para não enfastiar-te com o meu canto.
SONETO 103

Ah! Que pobreza traz a minha Musa,
Que de tal modo demonstra seu orgulho,
Mesmo o ínfimo argumento vale mais,
Do que ouvir meus elogios a seu favor.
Ah, não me culpes se eu não mais escrever!
Olha no espelho, e lá verás um rosto
Que em muito supera minha torpe invenção,
Borrando minhas feições, e lançando-me em desgraça.
Não era pecado, então, ao tentar emendar,
Arruinar o ser que antes era são?
Porque meus versos não tendem a mais nada
Do que a bendizer tuas graças e teus dons;
E mais, muito mais, do que em meus versos cabe,
Teu espelho te diz ao te mirares nele.

SONETO 104

Para mim, bela amiga, jamais serás velha,
Pois assim como eras da primeira vez,
Ainda me pareces bela. O frio de três invernos
Ceifou das florestas o calor de três verões,
Três belas primaveras amareleceram no outono,
Eu vi, com o passar das estações,
Três perfumes de abril arderam em três quentes junhos,
Desde que te vi tão jovem ainda a preservar a juventude.
Ah, embora a beleza, mão avara,
Roube de sua imagem, e não perceba seu gesto;
Então tua doce cor, que para mim ainda é fresca,
Alterou-se, e meus olhos podem se enganar.
Por medo de que, ouve bem, envelheças intacta:
Desde que nasceste, morreu o verão da beleza.
SONETO 105

Não deixes meu amor ser chamado idolatria,
Nem minha amada, de meu ídolo,
Pois todos os meus cantos e versos são apenas
Para ela, sempre sobre ela, e muito mais ainda.
Amável é meu amor, hoje e amanhã,
Sempre constante em maravilhoso espanto;
Portanto, meu verso, preso à constância,
Ao dizer uma coisa, entrevê outra.
Bela, gentil e verdadeira, é tudo o que digo,
Bela, gentil e verdadeira, dito com tantas palavras;
E, nesta alternância, uso a minha mente,
Três em um, que suporta a soberba visão.
Bela, gentil e verdadeira sempre viveram sozinhos,
Pois, juntos, até hoje, nunca existiram em ninguém.

SONETO 106

Quando na passagem do tempo perdido
Vejo descritos os belos ramos,
E a beleza emprestar seus dons à velha rima,
Ao elogiar as damas mortas e os belos cavaleiros,
Então, no brasão da melhor doçura da beleza,
Da mão, dos pés, dos lábios, dos olhos, da fronte,
Vejo que sua antiga pluma teria expressado
Mesmo tal beleza como teu senhor agora.
Então, todos os elogios não são senão profecias
Deste nosso tempo, tudo que pressagias,
E, mesmo vendo com olhos de adivinho,
Não tinham talento suficiente para cantar os teus dons;
Pois nós, que hoje aqui estamos, e vemos,
Temos olhos para sonhar, mas não línguas para louvar.
SONETO 107

Não os meus medos, nem a alma profética
Do imenso mundo que sonha com o futuro
Pode controlar o meu verdadeiro amor,
Suposto e destinado à desgraça certa.
A lua mortal tem seu eclipse prolongado,
E os tristes augúrios desdenham seus presságios;
Incertezas hoje coroam-se seguras,
E a paz proclama os frutos de uma eternidade.
Agora com as gotas desse momento tão balsâmico,
Meu amor parece jovem, e a Morte a mim se subjuga,
Como, apesar dela, eu viverei nesta pobre rima,
Enquanto ela insulta suas turbas tolas e emudecidas;
E tu, nisto, encontrarás teu monumento,
Quando ruírem os túmulos de bronze dos tiranos.

SONETO 108

O que há na mente que a pena possa descrever
Que ainda não revelou a ti o meu verdadeiro espírito?
O que há de novo a ser dito, o que há agora a registrar,
Que possa expressar o meu amor ou os teus belos méritos?
Nada, meu caro rapaz; porém, como as preces divinas,
Devo, a cada dia, repetir as mesmas palavras,
Sem contar o que passou, tu comigo, eu contigo,
Mesmo quando primeiro pronunciei o teu nome.
Então, o eterno amor dentro do terno peito
Não pesa nem o pó, nem a injúria do tempo,
Nem dá lugar às rugas necessárias,
Mas faz da antiguidade a sua condutora,
Encontrando a primeira vaidade do amor ali nascido,
Onde o tempo e as belas formas o mostrassem morto.
SONETO 109

Ó, nunca digas que foi falso meu coração,
Embora a ausência assim me fizesse parecer!
Tão leve me desprendo do meu corpo,
Quanto da minha alma, que jaz em teu peito:
Eis o meu lar de amor: se tenho errado,
Como quem viaja, novamente retorno;
Ainda a tempo, mas sem retomá-lo –
Para dar sustento ao meu engano.
Nunca acredites, mesmo que em minha natureza reinem
Todas as fraquezas que assediam qualquer um,
Cuja honra seria grosseiramente manchada,
Desperdiçando tudo que tens de bom;
A nada neste imenso universo me dedico,
Exceto a ti, minha rosa; e, nele, és tudo para mim.

SONETO 110

Ah, é bem verdade, fui a toda parte
E fiz de mim um tolo perante todos,
Gorei os pensamentos, vendi barato o mais caro,
Renovei velhas ofensas às minhas afeições.
Certo é que encarei a verdade
De soslaio e a estranhei; mas, por tudo que foi dito,
Esses erros deram novo alento ao meu coração,
E as piores tentativas provaram que és meu amor.
Agora tudo está feito, tenha o que não tiver fim;
Meu apetite nunca mais eu moerei
Para obter novas provas, para testar um velho amigo,
Um deus do amor a quem sirvo.
Então, receba a mim, dando-me o melhor dos céus,
Mesmo para o teu mais puro e adorado coração.
SONETO 111

Ó, por mim, desprezas a Sorte,
A deusa culpada de meus malfeitos,
Que não deu mais à minha vida
Do que meios advindos dos modos mais comuns.
Então, sobrevém que meu nome receba uma marca,
E quase de imediato minha natureza se subjuga
Ao que se afaz, como à mão do tintureiro.
Tem pena de mim: desejava-me renovado,
Assim como um paciente, aquiesço e bebo
As poções para curar minha forte infecção;
Nenhum amargor que eu julgue amargo,
Nenhuma dupla sentença para corrigir a correção.
Tem pena de mim, cara amiga, e te asseguro
Que até a tua pena é bastante para dar-me a cura.

SONETO 112

Teu amor e o pesar dão-me a impressão
Estampando o escândalo vulgar em meu cenho;
Que me importa quem me queira bem ou mal,
Senão tu, sobre meu bom ou mau alento?
Tu és todo o meu mundo, e devo esforçar-me
Para saber as más e boas opiniões que tens sobre mim;
Não há ninguém para mim, nem eu para mais ninguém,
Que meu duro sentido mude para o bem ou para o mal.
Num abismo assim profundo lanço tudo que me importa
Que os outros digam que meu senso viperino
Pela crítica e o elogio sejam impedidos.
Veja como dispenso com minha negligência:
Vives tão firme em meu propósito,
Que todos além de mim já feneceram.
SONETO 113

Desde que te deixei, meus olhos se ensimesmaram,
E quem me leva a caminhar livre
Em parte, vê e, em parte, está cego,
Pensando ver, mas, na verdade, não vê;
Pois não indica nenhuma forma ao coração
De pássaro, flor, ou silhueta, que consiga divisar;
Desses fugidios objetos a mente não se ocupa,
Nem sua vista se detém sobre o que possa vislumbrar;
Pois diante da mais branda ou mais rude visão,
A mais formosa ou deformada criatura,
A montanha ou o mar, o dia ou a noite,
Corvo ou pomba, empresta a eles tua forma.
Incapaz de ver outra coisa, tão cheia de ti,
Minha mente certa torna meus olhos incertos.

SONETO 114

Deve a minha mente, coroada de ti,
Sorver a praga do rei, este elogio?
Ou devo dizer que meu olho não mente,
E que teu amor ensinou-lhe esta alquimia,
De transformar monstros e coisas indigestas
Em querubins semelhantes à tua doce imagem,
Transmutando todo o mal em perfeito bem
Tão rápido quanto tudo dele se aproxima?
Ó, eis o primeiro, o elogio a meu ver,
E minha grande mente majestosamente o sorve.
Meus olhos sabem bem o que a língua prova,
E para o palato prepara o copo.
Se for veneno, será um pecado menor
Do que meu amor por ele e, assim, principio.
SONETO 115

Estas linhas que escrevi antes mentem,
Mesmo as que dizem que eu não poderia amar-te mais;
Embora meu pensamento não soubesse a razão
Por que meu ardor devesse depois se apagar.
Mas ao reconhecer o Tempo, cujos milhões de acidentes
Penetram entre os juramentos e alteram decretos de reis,
Tingem a sagrada beleza, turvam as mais claras intenções,
Desviam as mentes fortes para o curso das coisas mutáveis –
Ah, por que, ao temer a tirania do Tempo,
Não deveria eu dizer, “Agora eu te amo mais”,
Quando a certeza vence a incerteza,
Coroando o presente, duvidando de tudo o mais?
O amor é como um bebê; então, não posso dizê-lo,
E dar plena altura àquilo que ainda está a crescer.

SONETO 116

Não há empecilhos quando mentes
Verdadeiras se afeiçoam. O amor inexiste
Quando se altera por qualquer motivo,
Ou se curva sob o ímpeto apressado:
Ah, não! É um olho inabalável,
A mirar as tempestades sem se alterar;
É a estrela-guia de todo barco à deriva,
Cujo valor se desconhece, embora alta viva sobre o mar.
O amor não serve ao Tempo, embora as róseas faces e lábios
Cedam ao arco de sua longa foice;
O amor não se altera com suas breves horas e dias,
Mas sustenta-se firme até o fim das eras.
Se tudo que eu disse se provar um engano,
Jamais escrevi, nem amou qualquer humano.
SONETO 117

Disto podes me acusar; que me neguei
A pagar mais uma vez por teus abandonos,
Esquecido de ver o teu amor,
Aonde os laços me prendem a cada dia;
Que tenho estado com as mentes mais impuras,
E cedido ao tempo teu direito adquirido;
Que icei velas a todos os ventos
Que me roubaram de teus olhos.
Marca todas as minhas vontades e erros,
E, com essas provas, acumula conjecturas,
Impõe-me o teu juízo,
Mas não me ataques com teu ódio:
Pois meu apelo revela que tudo fiz para provar
A constância e a virtude do teu amor.

SONETO 118

Para aguçar nossos apetites
Urgirmos o palato a provar de tudo;
Para prevenir moléstias desconhecidas
Adoecemos para afastar as doenças ao nos purificar.
Mesmo assim, prenhe de tua doçura inebriante,
Para amargar os molhos fiz a minha comida,
E, doente de bem-estar, encontrei um tipo de igualdade
Para adoecer onde houvesse necessidade.
Eis a política do amor, antecipar
Os males que não existem, alimentados pelas falhas,
E trazidos à medicina em condição saudável,
Que, igualada à bondade, seria curada pelo mal.
Mas, então, aprendi, e vejo a verdade na lição,
Os remédios envenenam quem adoeceu de ti.
SONETO 119

Que poções bebi das lágrimas das Sereias,
Destiladas dos troncos que queimam como o inferno,
Vertendo medos em esperanças, e esperanças, em medos,
Sempre perdendo quando eu estava a ponto de vencer?
Que males terríveis cometeu meu coração,
Enquanto se julgava jamais abençoado!
Como vagaram meus olhos fora de suas órbitas,
Ao se distraírem nessa louca febre!
Ah, o benefício da dúvida! Agora descubro ser verdade
Que o bem se aperfeiçoa com o mal;
E o amor arruinado, ao ser reconstruído,
Cresce mais belo, mais forte e se torna ainda maior.
Então, retorno, refeito, ao meu contentamento,
E ganho, por sorte, três vezes mais do que gastei!

SONETO 120

Tu, que um dia me ofendeste, sê meu amigo agora,
E aquela mágoa que então senti
Devo relevar como uma antiga transgressão,
A menos que meus nervos fossem de aço ou de ferro.
Se fosses atacado por minha grosseria,
Como fui por ti, viverias um inferno,
E eu, tirano, não sossegaria,
Até mostrar-te quanto sofri com a tua ofensa.
Ó, que nossa noite de pesar nos lembre,
No fundo, quão dura é a tristeza,
E logo para ti, como de ti para mim, então servido
O humilde bálsamo que unge o peito ferido!
Mas teu ultraje agora assume um preço;
O meu te redime, e o teu redime a mim.
SONETO 121

É melhor ser vil do que vil considerado,
Quando não se é, e ser repreendido por sê-lo,
E o prazer justo perdido, que é tão caro
Não por nós, mas pela opinião alheia.
Por que a visão falsa e adulterada dos outros
Deve julgar o meu sangue ardente?
Ou minhas fraquezas, enquanto o mais fraco espia,
Que por eles seja mau o que acredito bom?
Não, eu sou quem sou, e eles que julgam
Meus erros reconhecem em mim apenas os deles;
Posso ser reto, embora eles sejam tortos;
Diante desses pensamentos, meus atos se ocultam,
A menos que esse mal geral que eles mantêm:
Todos são maus e em sua maldade reinam.

SONETO 122

Teus dons, tuas palavras, estão em minha mente
Com todas as letras, em eterna lembrança,
Que permanecerá acima da escória ociosa
Além de todos os dados, mesmo na eternidade;
Ou, ao menos, enquanto a mente e o coração
Possam por sua natureza subsistir;
Até que todo o esquecimento liberte sua parte
De ti, teu registro não se perderá.
Esses pobres dados não podem reter tudo,
Nem preciso de números para medir o teu amor;
Assim fui corajoso para dar de mim a eles,
Para confiar nesses dados que sobram em ti.
Manter um objeto para lembrar-te
Seria aceitar o esquecimento em mim.
SONETO 123

Não! Tempo, não te regozijarás porque envelheço:
Tuas pirâmides erguidas com nova força
A mim não assustam, nem surpreendem;
São apenas visões de velhos lugares.
Nossos dias são breves e, portanto, admiramos
O que tu nos impõe que envelheceu;
E preferimos tê-los conforme nosso desejo,
A conhecê-los somente por suas lendas.
Desafio tanto as histórias quanto a ti,
Sem me importar com o passado ou o presente;
Pois teus livros e o que vemos ambos mentem,
Feitos, mal e mal, em tua contínua pressa:
Isto eu juro, e assim será sempre,
Serei verdadeiro, apesar de ti e tua longa foice.

SONETO 124

Se meu caro amor fosse um .lho natural,
Poderia, bastardo da Fortuna, não ter um pai,
Sujeito ao amor ou o ódio do Tempo,
Arrebanhado entre as flores ou ervas.
Não, ele foi concebido longe do acaso;
Não sofre com as alegres pompas, nem cai
Sob o golpe de servos descontentes,
Em que o tempo certo clama para si.
Não teme a política, esse herético,
Que trabalha à custa de meios expedientes,
Mas por si só permanece altamente político,
Sem crescer no calor, nem minguar com a chuva.
A isso, como testemunha, clamo os tolos do Tempo,
Que morrem pela bondade, quando vivem pelo crime.